terça-feira, 4 de março de 2014

Xingu, Orlando Villas-Bôas e a escola

Pode ser inacreditável para alguns, mas somente consegui assistir ao filme "Xingu", que narra à saga dos irmãos Villas-Bôas pelo interior do Brasil, há alguns dias atrás e olha que o filme foi lançado em 2002 e ainda foi transformado em série pela Rede Globo, que o exibiu no ano passado, mas esses atrasos são comuns para quem trabalha como professor.

Devido à quantidade de aulas e o montante de tarefas que temos que desempenhar, tudo isso acaba nos privando de acompanhar "em tempo real" os lançamentos nos cinemas, bem como os livros, que até participamos das sessões de lançamento, mas que vamos ler só depois de muitos meses quando ninguém mais fala sobre ele.

Enfim, nos últimos dias, consegui assistir ao filme "Xingu" e me emocionei pela história de coragem dos três irmãos que deixaram uma vida cômoda em São Paulo e se candidataram para explorar o misterioso interior brasileiro.

Mas, o que mais me emocionou, de fato, foi a recordação que eu tive enquanto assistia a saga empreendida pelos Villas-Bôas na expedição que ficou conhecida como "Marcha para o Oeste".

Eu tinha 11 anos em 1994 e estava na antiga 5ª série (atual 6º ano). Estudava na Fundação Bradesco, em Osasco. Numa tarde avisarem que teríamos a visita de homem que tinha muitas histórias, pois ele havia passado muitos anos vivendo com os indígenas. Era um tal de Orlando Villas-Bôas. Lembro-me como todos nós ficamos ansiosos em conhecê-lo por causa da descrição feita pela professora e também pela possibilidade de "matarmos" a aula assistindo a uma palestra.

Fomos conduzidos, naquela tarde ensolarada, para o último andar do prédio. Lá ficava a quadra com as suas grossas telhas fabricadas pela Eternit e que imprimiam ao ambiente um calor ainda mais insuportável. Acho que o Orlando Villas-Bôas acostumado com o calor equatorial, nem se importou com o ambiente abafado daquela quadra.

Sentamos no chão. O piso era formado com grandes tiras de taco de uma madeira que brilhava. Na frente do grupo de aproximadamente 45 crianças, havia um simples banquinho de madeira. Em volta dele, artigos indígenas estavam espalhados pelo chão. 

Passaram-se poucos minutos e por uma das duas entradas da quadra, numa pequena porta do nosso lado esquerdo, eis que entrou um homem com uma estatura média, um pouco gordinho, com um cabelo grande e uma barba espessa. Usava óculos e estava acompanhado pela Direção e pela Coordenação do colégio. Todos nós viramos para ver quem era o homem que tinha vivido com os índios e deles, apreendido muitas histórias.

Orlando Villas-Bôas sentou-se no banquinho. Apresentou-se e começou a contar sobre a sua história de vida, principalmente o tempo em que passou com os indígenas. Apresentou todos os objetos que trouxera. Para cada um contava uma história, de como tinha ganhado, de como funcionava, de como era fabricado, de como era usado... 

As crianças, acostumadas a fazer bagunça e não conseguirem parar de conversar dentro da sala de aula e nos outros ambientes da escola ficaram quietas e hipnotizadas pela fala alegre e calma, bem como pelo aspecto humilde e simples de Orlando Villas-Bôas. 

Depois da apresentação dele, foi aberta uma sessão de perguntas. Levantávamos as mãos para perguntar sobre os indígenas: como viviam, comiam, brincavam, caçavam, plantavam, tomavam banho, dormiam... Eram as mais variadas perguntas de crianças urbanas, crianças que nunca haviam encontrado e conversado com um indígena de verdade. Só conhecíamos os indígenas pela televisão. 

Villas-Bôas foi respondendo pergunta por pergunta. Sempre de forma alegre, gentil e paciente. Deixou, ao final, nós manejarmos os instrumentos indígenas. Pudemos chacoalhá-los, soprá-los e, claro, brincarmos com eles, enquanto o Villas-Bôas, sempre com um sorriso estampado no rosto, de longe, nos admirava. Talvez pudesse pensar como as crianças indígenas também ficariam entretidas com os objetos daquelas que viviam na cidade, como os vídeo games, telefones, televisões, entre outros.

Foi uma tarde muito diferente. Despedimo-nos e nunca mais a imagem de Villas-Bôas saiu da minha consciência. Sempre que o via na televisão, corria para contar para os meus pais e amigos que um dia tinha conversado com ele e conhecia-o de perto. 

Muitos anos depois é que eu fui entender a contribuição e a importância dele e dos outros seus irmãos para a história indigenista brasileira. Quando criança, sentado ali na frente dele, já sentia que estava diante de alguém importante para o país, mas não tinha ideia de quanto às ações e o pensamento dele eram tão importantes para o Brasil. 

Quando foi noticiada a morte de Orlando Villas-Bôas, em dezembro de 2002, antes que eu saísse correndo como eu fazia quando era menino para dizer que o conhecia, que ele um dia visitou a minha escola, etc., sentei na beirada da cama e fiz uma singela oração para a família dele. Lamentei profundamente a sua morte. Tinha aprendido a admirá-lo e, desde então, passei a acompanhar o seu trabalho. 

Essa admiração nasceu e só foi possível pelo trabalho que a escola fez em apresentá-lo para mim, enquanto criança. Por isso que esse episódio retrata, mesmo que minimamente, o importante papel que a escola desempenha na formação de uma pessoa e quanto é necessário e importante levar até ela pesquisadores, políticos, intelectuais, escritores, artistas plásticos, músicos entre outros, para apresentá-los para os estudantes. 

A escola é uma instituição cuja importância para a sociedade é imensurável e é triste verificarmos o atual estado em que ela, tanto na esfera pública quanto na privada, está, mas isso é um assunto para outro texto.

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