sábado, 1 de setembro de 2012

O que é a vida?


Ontem presenciei um acidente envolvendo uma motocicleta e um automóvel. Faltavam apenas dez minutos para a uma da tarde, quando a minha atenção foi desviada para um forte estrondo vindo do meu lado esquerdo. Estava em pé no ponto de ônibus, olhando atentamente se via algum coletivo vindo em meio ao congestionamento que estava formado próximo ao início da avenida, já que ali também havia acontecido um acidente envolvendo um automóvel e um ônibus municipal.

Com o barulho, todos olharam para o lado lastimando a ocorrência de mais um acidente. Percebi que a lástima não era em relação às vidas humanas que estavam em jogo naquele momento e sim, na possibilidade do congestionamento aumentar naquela avenida.

Sem pensar, corri em direção ao acidente. Não sei o porquê até agora. Curiosidade? Sentimento de pena com os envolvidos? Não sei responder, somente cheguei próximo e avistei na esquina da Avenida São João com a Al. Nothmann um corpo estendido no chão. Os braços estavam abertos. Um líquido rubro saía da cabeça e escorria num filete em direção à sarjeta. A cor da pele, pálida, gélida das mãos, da testa e da nuca, únicas partes que eram visíveis evidenciava que a morte havia chegado para aquele jovem motoboy. O corpo estava inerte.

Perto dele, um capacete todo arranhado. Num canto da rua, um pé de um tênis bem surrado. O outro estava jogado a alguns metros do corpo. Também um pequeno baú que os motociclistas costumam fixar atrás da moto para poder guardar alguns pertences, estava todo amassado jogado de cabeça para baixo na calçada.

Poucos metros do falecido havia um Fiat Idea com o pisca alerta ligado e uma jovem japonesa com uma criança no colo chorava copiosamente dizendo aos quatro ventos que ela não tinha culpa do acontecido. A moto do rapaz jazia debaixo do veículo, toda retorcida. O cheiro do combustível que vazava da moto e descia avenida abaixo completava o aroma amargo daquele início de tarde.

Mais pessoas se aglomeravam. Algumas concomitantemente ligavam para o serviço de resgate, enquanto outras telefonavam para a polícia. Outras conversavam com a japonesa, dizendo que haviam presenciado o erro tão grotesco causado pelo falecido e, de forma oportunista, diziam uma espécie de "bem feito" para ele. Ouvi de um comerciante próximo, que o motociclista havia feito uma conversão errada, batendo de frente com o carro. Ele foi arremessado direto para a dura e suja calçada enquanto o carro caminhou por alguns metros com a moto debaixo dele.

Enquanto o resgate não chegava, alguns transeuntes pararam para ver o estado deplorável do motociclista e contribuíram no pequeno debate inoportuno que se formou ali sobre a postura dos motoboys na cidade de São Paulo, até que inesperadamente uma ambulância surgiu do meio do congestionamento e estacionou bruscamente ao lado do corpo. Mas não era uma "ambulância oficial", dessas que a gente está acostumado a ver nas ruas e nos programas policiais, vermelha, com o logo do governo do estado ou da polícia militar. Era uma ambulância que, por acaso, estava passando ali naquele momento. Ela levava uma idosa cadeirante até um hospital para continuar um tratamento. Percebi que a sorte do motociclista começou a mudar a partir daquela chegada.

Rapidamente desceu do veículo uma enfermeira com alguns apetrechos na mão. O corpo do rapaz encontrava-se ainda imóvel, enquanto o sangue continuava escorrer pela calçada. Entre um comentário de um pedestre dizendo que "esse já era" e outro lamentando o trânsito impiedoso que a cidade se tornara, a enfermeira colocou uma espécie de pregador na mão do falecido. Depois de alguns "bips" do pequeno aparelho, a moça de branco deu um grito. O rapaz ainda estava vivo! Mas por pouquíssimo tempo, exclamou. Os batimentos, a pressão sanguínea e outros "índices" que diferenciam entre um ser estar vivo e outro morto, puderam ser interpretados por aquela profissional, que já correu para dentro da perua e trouxe um pequeno cilindro de oxigênio.

Entre feridas e muito sangue, ela conseguiu precariamente colocar a máscara no falecido (?) que, inacreditavelmente, após alguns poucos segundos, começou a ensaiar pequenos movimentos com as pernas e os braços. De bruços, consegui ver que a sua costela já "subia e descia", mostrando que o mesmo estava respirando. Pude perceber o alívio no rosto das pessoas ao redor, principalmente a da japonesa que naquele instante deixaria de receber o ingrato e triste título de homicida.

Mais alguns segundos se passaram e o rapaz que antes estava jogado na calçada, inerte, agora estava se mexendo, até com força, pois queria de qualquer forma se levantar. Movimentava as pernas e os braços e tentava tirar a máscara de oxigênio. Tudo isso acompanhados com intensos urros de dor. O seu grito abafado pela máscara, doía em meus ouvidos. Independente do que aquele rapaz fizera para estar naquela situação, tive naquele momento pena dele, muita pena. Era um ser humano como eu e, por um descuido, imprudência, erro, não sei mais o que, estava pagando um preço muito alto por aquilo que cometera.

Já havia se passados longos minutos do início da tragédia até que o resgate, esse sim oficial, representante do estado, chegou. O serviço não foi o dos mais difíceis, haja vista que o rapaz já estava um pouco mais calmo e a enfermeira havia adiantado o serviço, digamos, mais pesado, mas os seus gritos estridentes de dor ainda continuavam. Os bombeiros enfaixaram a sua cabeça, colocaram um colar cervical e transferiram-no para uma maca que foi colocada dentro da ambulância, que saiu correndo abrindo caminho por entre os carros.

Quem também passou mal com essa história toda fui eu. Sem almoço e a cabeça começando a doer por causa disso, as minhas pernas começaram a tremer por causa do nervoso e da tensão de toda a cena descrita acima. A minha pressão começou a baixar e senti que logo iria desmaiar. Para evitar mais um susto naqueles que ainda se encontravam no local, encontrei na mesma calçada, um pequeno desnível, um degrau para a entrada de uma loja e fiquei ali sentado durante alguns minutos, enquanto o mal-estar teimava em não desaparecer.

Enquanto recuperava a cor do meu rosto (sempre que passo mal fico pálido) fiquei pensando sobre o havia ocorrido com aquele rapaz. Todos acreditavam que ele estava morto ou caminhando para a morte. Acho que ele já estava com um "pé" lá, pela gravidade da batida, pelo ferimento na cabeça aliado a demora do serviço de resgate. A sua vida parecia ter chegado ao fim de uma forma muito triste e violenta até que a sorte do rapaz se reverteu com a chegada do serviço médico "paralelo" e daí o que era para ser um final trágico, acredito que tenha sido um final mais satisfatório, mais bonito para todos, principalmente para o acidentado e para a sua família.

Fiquei pensando o que é a vida e quanto ela é algo simples, rápida, fugaz, um sopro. Minutos atrás aquele jovem obviamente estava em outro lugar, talvez conversando sobre os seus planos para o futuro com alguém, marcando um encontro com a namorada, brigando ou fazendo as pazes com alguma pessoa, resolvendo um problema, negociando um emprego novo, fechando a compra de um carro ou marcando um almoço com o seu filho ou mãe... E depois estava ali, estendido no chão... Morto, tudo acabado, tudo perdido, sem condições de consertar o que havia ficado para trás. Até que uma nova chance foi dada a ele. Não era a hora dele partir, pois a sua missão ainda estava incompleta.

Na correria cotidiana esquecemos que somos finitos, que possamos em alguns simples segundos deixarmos tudo para trás sem termos tempo e oportunidade de dizer o quanto a gente ama alguém ou dizer para alguém o quanto ele ou ela é especial para nós ou agradecer alguém por algo que fizeste a nós ou simplesmente para pedir perdão por algum deslize cometido. Se o presente não fosse algo importante na nossa existência, não teria esse nome de PRESENTE. Por isso devemos viver intensamente o hoje, o presente, o agora, para que, se ao dobrarmos uma esquina e a morte nos encontrar, possamos partir em paz, com a satisfação de que realmente aproveitamos a plenitude da vida, pois talvez não tenhamos uma segunda chance, como foi dada maravilhosamente ao motociclista.

4 comentários:

  1. Muito bom, realmente muito bom o texto. Dá para sentir toda a cena apenas lendo o relato. Sem falar que ficou bem difícil comprovar a veracidade do evento (não sei se era sua intenção, mas parabéns por isso. Sinal de que foi bem escrito).

    Parabéns também pela interessante reflexão no final. Não se deve viver pelo passado ou pelo futuro. Deve-se viver pelo presente.

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  2. Que experiência!
    De fato, o valor da vida tende a se perder a partir do momento em que 'interfere na comodidade alheia'. É lamentável quão progressiva tem sido a perda da sensibilidade. Um acidente (quase) fatal provoca na massa o inverso do que sentiu por aquele motoboy, ou seja, ao invés da compaixão e piedade, leva as pessoas à procurarem culpados. Ninguém 'pede' por tão dolorosa consequência. Quantas vezes as pessoas avançam o sinal ou fazem conversões perigosas sem se envolverem em acidentes? É a frequência com que NÃO são punidas por isso (seja com multas ou acidentes) que as fazem repetir tais erros. Quero dizer, se não viesse carro algum o sujeito seria apenas mais um 'sortudo' que infringiu as leis de trânsito sem maiores consequências.
    Então, o fato de ter quase morrido o faz se tornar quase um bandido!
    Isso é ridículo. Enquanto o valor da vida depender das consequências que os fatos levam, perderemos a noção de coletividade. Do que nos torna uma mesma espécie. Da essência que todos carregamos.
    Realmente, foi um ótimo post! Espero que você esteja se sentindo melhor ao partilhar tal episódio... E que não se sinta totalmente frustrado por não ter encontrado outras pessoas com igual preocupação humanitária como a sua. Afinal, se você estava lá com uma perspectiva diferente, é porque podemos ainda ter esperanças de que hajam outros por aí com valores semelhantes aos seus. :)

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  3. Muito bom Professor, fico feliz por aquele motoboy q agora teve mais uma oportunidade na vida....e, muito bonita a história....Desculpe ñ poder abrir antes o email porque estava com problema..Ok Bj......<3

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  4. Muito bom meu irmão... senti muita emoção e vontade de chorar. Já passei por isso, graças a Deus com muito menos gravidade, mas cair e ficar jogado no asfalto sem saber o que se passa, qual seu estado, enfim, é uma situação muito amarga. Vejo isso rotineiramente no meu trabalho e sinto que nunca isso ficará comum, como muitos pensam por lidar sempre com isso... na verdade, sempre nos dá uma tristeza profunda em saber que ali está um ser humano como nós, independente se cometeu um erro, um deslize... isso é amor ao próximo!

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